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domingo, 18 de julho de 2010




FLORES PARA MINHA AVÓ


O vento estava forte e gelado. 
Um velório de alguém querido, numa tarde praticamente sem sol e eu com uma malha fina, despreparada para a mudança de temperatura.
À noite, ao retornar pra casa, sentia o corpo dolorido, a cabeça pesada e não tinha ânimo sequer para tomar um banho quente, um bom analgésico e me deitar embaixo das cobertas.
Criei forças e entrei no chuveiro , afinal, banho é um dos maiores luxos que desfrutamos sem nem ao menos nos darmos conta .
Entrei embaixo das cobertas e comecei a chorar.
Ele ficou preocupado, quis saber o que se passava, afinal eu não ia chorar por sentir frio ou dor de cabeça.
-Eu quero a minha avó. Não quero que ela morra, não quero...
-Mas sua avó está bem, Xú!
-Não, ela está velhinha e logo vai embora, eu sei...
-Não, Xuxú, sua avó é forte, espere aí que vou te preparar um leite quente.
Lembro de tudo, toda a minha vida foi permeada por ela e por meu avô.
Desde que minha memória consegue alcançar, lembro -me que dormia com ela, em sua enorme cama de imbuia toda trabalhada em rococó.
Acordava-se cedo, vovô ia cuidar dos pescadores, abrir as peixarias, levar peixes pro Ceasa...
EU sempre acordava junto e pedia que ele me trouxesse uma asa de anjo, para que eu pudesse enfim voar. Mas ele sempre enfrentava contratempos espetaculares e nunca conseguia comprar a tal asa.
E para me consolar da falta de asas, ela me trazia o leite na cama.
Se  eu tinha tosse, lá ia ela, preparar o leite quente com açúcar queimado...
Quando eu tinha algum desarranjo, (hoje chama-se virose), ela fazia purê de batata e se eu não queria comer coisa alguma, ela preparava aquela panelada de costelinha de porco , arroz, feijão e batata frita.
E tinha uma panela preta, que não sei explicar como é que era, mas eram dois lados que se encaixavam e lá ela colocava pão com manteiga e ficava virando a panela de um lado pro outro, de modo que o pão ficava uniformemente torradinho.
Pão torrado com café preto.
Bolinho de chuva. EU ficava sentada, olhando extasiada, como pode ela ter aprendido essa mágica de fazer uma coisa virar outra? Aí, como se já não estivesse bom, ela jogava açúcar e canela por cima. Nem precisava chover... Era lá, o meu paraíso, o meu lugar de paz...
Ela fumava cigarro de palha. ...Esses dias fui ao mercadão e senti o cheiro de fumo de corda.
O cheiro da minha avó!
Cheiro é uma coisa incrível, né? Cheiro nos transporta!
Eu tinha bronquite e algum cabra desses bem safados, inventou de dizer que gordura de capivara curava qualquer bronquite. Tinha que ser dado pela manhã, junto com um pouco de café,que era pra ” enganar o gosto da gordura”. Como se alguma coisa no universo tivesse esse poder, de enganar o gosto da tal da gordura de capivara. Esse foi um dos motivos de eu não gostar de acordar cedo. Na verdade, eu queria era não ter que acordar nunca, pois acordar estava diretamente ligado àquele copo enorme de café com capivara. Mas como não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, finalmente foi proibida a caça às capivaras e aquele foi um dia de festa, uma festa dentro de mim!!! Mas de todo modo, nunca mais tive bronquite.
Um dia, eu estava muito doente, (eu sempre estava doente, repare) com pouco mais de 6 anos, e lembro que por causa da nefrite, fiquei meses e meses sem comer sal e proteína. Fomos para uma cidade vizinha, maior e com mais recursos que a nossa, levar os exames pro médico ver. Ele leu tudo e me perguntou:
-O que você mais gostaria de comer agora?
-Carne de porco e batata frita e coca cola e sorvete de chocolate e Milk shake só se for servido naquele copinho que tenho da festa do sorvete.
-Só isso?
-Só.
Ele olhou pra elas e disse:
-Levem ela pra casa, e deixem que ela coma tudo o que tiver vontade de comer. É só isso o que vocês podem fazer por ela.
Acho que médico pensa que criança é tonta, né? Claro que entendi o que aquilo queria dizer. Mas não deixei de ficar feliz pela possibilidade de sentir o gosto da carne, da batata e da coca cola mais uma vez que fosse.
Enquanto minha mãe tentava disfarçar algumas lágrimas, minha avó se levantou, olhou pro relógio e disse:
-É cedo ainda. Saindo daqui agora, em duas hora estaremos em Bauru, e lá conheço um médico ótimo. Vamos, se levantem, temos que ir!
E foi assim que ela salvou minha vida.
Salvou a mim, amparou suas filhas, seus genros, seus netos....tooodos eles, todos!
Meu avô não teria conseguido passar a vida ao lado de uma mulherzinha. Tinha que ser exatamente como ela era, a fortaleza inabalável que ela era,uma mulher que não se enjoa e nem se cansa, pra poder fazer par com ele.
Verdadeiros Lampião e Maria Bonita de minha vida.
Ela, junto a ele, foi envelhecendo sem que déssemos conta disso.
Lembro de como era engraçado ficar naquele sofá da sala entre os dois, ouvindo a conversa acerca dos programas de TV. Ela explicava uma coisa, e apontava pra TV com aquele dedo indicador torto por causa da artrite , e conforme apontava pra TV, seu dedo indicava a porta da rua. Ele olhava, olhava, e como não ouvia direito, menos ainda entendia quando ela falava olhando pra TV e apontando pra porta da rua. Era um diálogo engraçadíssimo.
Ela se aborrecia por ele não entender e ele se aborrecia por ela não explicar direito.
-Você tá surdo, Américo!
-Pois deixa de ser besta, mulé!
-Eu to falando do Silvio Santos, olha na Mao dele, o maço de dinheiro!
-E eu to olhando! Lá fora, não tem nenhum verdureiro! Aaaaaara !Deixa de ser abestada!
-Seu avô tá caduco, tá vendo?
Eles se amavam tanto...Agora entendo isso. Ninguém consegue ficar uma vida toda junto, brigando, discutindo, divergindo, e sempre, sempre juntinho um do outro se não tiver amor demais.
Foi difícil pra ela. Muito mais pra ela do que foi pra todos nós, quando ele partiu.
Mas como não se tem outro jeito, ela continuou vivendo...
Hoje ela já não fuma mais seu fumo de corda, anda muito pouco e usa fraldas.
Todos nós juntos nunca daremos conta de fazer por ela , oque ela fez por cada um de nós.
Se eu choro? É claro que choro.
Estamos longe uma da outra e queria poder segurar suas mãos, como ela segurou as minhas.
E ainda queria ouvi-la dizer que pra tudo dá-se um jeito.
Queria poder mergulhar no seu mundo de contos e histórias de comadre e bolinhos de chuva e esquecer de tudo!
Como posso não chorar, sabendo que um dia ela não estará mais por aqui?
Ah, minha vozinha, essas linhas são pra você. Pra ficar registrado o quanto eu te amo.
Eis aqui as minhas flores pra senhora.
Receba-as e sinta seu perfume agora, que ainda estamos todos aqui.
Porque depois que você se for, eu não terei mais inspiração e
Sei que vai demorar muito pras flores voltarem a crescer no meu jardim...









19 comentários:

  1. Lu querida,
    Que homenagem bela e cheia de emoção.
    Uma coisa é certa, no terreno das lembranças, nunca nos esqueceremos.

    Beijos

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  2. Obrigada Angélica, pela sua presença constante nesse blog.
    Não gosto de escrever textos longos e até peço desculpas , mas ela é parte tão grande de minha vida, que é inevitável ficar extenso.
    Fico feliz por poder dizer em vida o que muitos, nao tem a oportunidade de dizer.
    Bjos no seu coração

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  3. LU...
    SABE O QUE VEJO?
    VEJO QUE VC SE PARECE MUITO COM A SUA VÓ...
    VC TBM É UMA VERDADEIRA FORTALEZA...
    FIQUE COM DEUS...
    BJS

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  4. Di,
    Você vê com os olhos do coração!
    Saudades de vocês!

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  5. Vc sempre nos emocionando, nos fazendo reviver cenas e fatos!Sabe a grande qualidade de sua avó Liles e do Américo? AMOR um sentimento que muitos não conhecem até hoje! não receberam essa dádiva em seus corações, quando ela se levantava para lhe dar o leite quente ela não tinha preguiça, ela tinha amor, e esse amor foi que a moveu a vida inteira, a cuidar das pessoas, a compreender as falhas,a aceitar tudo e todos... exatamente como eram!que bom que vc pôde desfrutar desse amor, pois ele faz toda a diferença no que vc é hoje!e essa amiga sua Diana foi absolutamente certa no comentário,vc também é uma verdadeira fortaleza, apenas não se deu conta disso...seus textos são sempre um presente para nós!
    Amo vc!

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  6. Lú, foi emocionante essa homenagem, parabéns!
    Senti até o cheiro do fumo de corda.
    Marcos

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  7. LU,cada vez que escreve algo,choro muitooo!!!, principalmente sobre nossos pais, (AMÉRICO E LILES),que foram mais que avós para vc e a Davi, sinto que conseguiram passar para vocês e tb pra mim um amor que levaremos para a eternidade. Realmente essa força e determinação que vc tem é a base do amor que recebeu deles, onde supriram todos os vazios e os preencheu com muito amor e dignidade. Esse grande presente que DEUS nos deu," AMÉRICO E LILES". Que pena! o tempo passa rápido e eles envelheceram,(Américo não está mais conosco,que vázio!) e a Vó com muita idade e limitações, mais forte como uma rocha. Obrigada Deus por esse grande presente em nossas vidas. bjs Lu,te amo. Re

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  8. Vc me fez reviver cenas, momentos, "cheiros"...
    Seus textos não tocam apenas aos que conhecem seus personagens. Eles atingem o coração dde todos!
    Lindooo, demais! Continue sempre!!
    Mesmo que exista sempre, quem tente dimuniur a grandeza disso td!

    bjs

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  9. Lindo d+ Lú,sua vó deveria ver isso ,ela ficaria orgulhosa de vc!Seus textos como sempre lindos e emocionantes!

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  10. Na Central do Brasil, Fernanda Montenegro escrevia cartas.
    Na minha história, Priscila as lê.
    Então, Pri, vai ser pra quando isso???

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  11. Vc sabe q sou sua fã Lú,vc escreve muito bem!Ja falei q vc deveria escrever livros + vc naum leva a serio!

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  12. É? E depois, o que eu vou fazer com os 930 que sobrarem? Isso se eu conseguir vender 70, né!!!
    beijos, Pri, e obrigada pelo seu carinho, viu?

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  13. Pôxa, lindo texto! Me deu uma saudade enorme das minhas duas avózinhas que ajudaram a me criar e que, infelizmente, já se foram...
    Adorei seu bog tbm. Obrigada pelos elogios...
    Bjos

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  14. Lú do Céu,nem vou falar nada,estou me tornando repetitiva,por isso você está fazendo tanto sucesso no jornal.É eu já fui lá dar uma olhadinha tá bombando hein,parabéns mais uma vez pelo texto e pela coluna,seus textos merecem,aliás você merece!!!Já está no meu favoritos.
    Bjs

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  15. Vc viu, menina! tenho até fã clube por lá!
    É a coisa mais linda do mundo aquele jornal e meu editor é só elogios.
    Assim vou ficar im-pos-sííííí´-vel!
    rsrsrs
    Bjos, queridona!

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  16. Tenho saudades da minha vó,
    mais ainda do cheiro de
    manhã e infância.

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  17. Ótimo Texto, Parabéns. Linda sua Avó.

    dá uma passada no meu blog também.
    http://otaviomsilva.blogspot.com/

    Forte Abraço

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  18. Avós sao mães com açúcar de baunilha!

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Sabia que somente pessoas especiais postam comentários aqui?