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sábado, 22 de janeiro de 2011






Paraísos Artificiais



Ele pousou a caneta sobre a ficha e a olhou atentamente por cima do óculos, como se algo não encaixasse.

- Como assim?

- É assim, vontade de não estar por aqui.

- O que te faz sentir vontade de não estar por aqui?

Ela olhou para ele, tentou sorver o que seus olhos lhe mostravam. Seria ele alguém que fez todas as escolhas certas ,ergueu seu pequeno império fazendo aquilo que gosta, constituiu família, teria ele belos filhos e uma mulher que o ama , fariam amor todos os dias? Seria mesmo capaz de compreender o que ela tinha a dizer?

Saberia ele de fato entender o que faz com que alguém não se sinta no lugar certo?

Sobre a mesa havia uma base que iluminava uma pequena bola de cristal que mudava de cor conforme o led se alterava.

- Às vezes me sinto bem. A alegria é coisa minha, da minha alma.. Mas a maior parte do tempo, penso que não me encaixo, que não há lugar pra mim por aqui.

- E onde é que você acha que é seu lugar?

Ela pegou a bola em suas mãos e o brilho da base do led desapareceu e aquela que era uma bola multicolorida, de repente se tornou uma simples e grande bola de gude.

- Acho que é isso, disse ela, olhando fixamente para a esfera.

- Sim?

- Acho que para a maioria das pessoas, a vida deve ser tão sem graça, que colocam luzes, pós e doces mágicos e leds coloridos para que sejam capazes de fugir da mediocridade existencial a qual estão condenadas. Para essas pessoas, a felicidade consiste em sair de dentro de si mesmos .Me entristece saber que para tais pessoas, viver seja quase uma dor, ou mais , muito mais que isso.

Fez-se um longo silêncio. Agora era ele que tentava sorver tudo aquilo, que saiu junto com as lágrimas, que caem por nao ser mais possível contê-las.

- Você acha que as pessoas se enganam para poderem ser felizes?

- Acho.

- E você, o que você pensa a respeito disso?

- Não penso nada.

- Não pensa nada, não tem opinião sobre isso?

- Na verdade de certo modo, eu sou como elas: a vida para mim tem sido pesada, ja que me afeto com tudo, sobretudo pela falta de afeto. Só nao me utilizo de subterfúgios, o que faz com que para mim, tudo se torne mais difícil.

- O que mais você sente?

- Eu sinto pena, pena da solidão que deve haver ali, pena de quem não é capaz de ver a beleza nas coisas simples, no por do sol, nas estrelas, no cheiro da flor ou na terra molhada pela chuva, no frescor das manhãs de outono, no afeto dado de livre e espontânea vontade, na necessidade de dar e receber carinho, de tocar e ser tocado...mas tudo isso é poesia, coisa de gente doida e fora dos eixos como eu, né, doutor?

- Hum....

Ela o olhou querendo acreditar que aquele homem teria a solução para os males que afligiam sua alma.

- Prozac, Daforin, ou simplesmente Fluoxetina. Vinte miligramas pela manhã. E este outro é pra você poder dormir.

Lhe entregou um bombom e pediu que voltasse em vinte dias.

Ela saiu pela porta, com o receituário nas mãos e no coração a certeza de que de fato, era a parte inversa da tal inversão de valores. Estava doente, e sabia disso, ao contrário do que faz qualquer neurótico, que nega-se a assumir sua doença.

Como não pôde ser capaz de combater o mundo colorido artificialmente,simplesmente juntou-se à ele...

7 comentários:

  1. .. menina você escreve prá caramba.
    …essa sua crônica é da pesada…como o mais que já li.
    …o que realmente vale é ser capaz de ver tudo e fotografar na real e não só na mente as pequeninas coisas que nos cercam.Estamos, somos ,assumir tudo é preciso e necessário, mesmo banhado em lágrimas.
    … na busca do equilíbrio, sem Prozacs etc… defendo as “LUZES ARTIFICIAIS” na mente e a certeza do brilho das “ESTRLAS”….no horizonte há sempre uma saída..

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  2. Lu, Parabéns, o texto é maravilhoso... Realmente ótimo...

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  3. Lu,
    Não me lembro de ter lido em nenhum livro, texto, blog ou coluna, algo tão profundo.
    Você tem noção de como sabe transformar sentimentos em palavras?
    Escrever bem, muitos o fazem.
    Mas o que você faz, transcende o escrever bem.
    Orgulhe-se desse seu talento , viu?
    Bjos

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  4. Me emociono de novo, mas dessa vez fico em silêncio depois de ler um dos seus textos. Uma noite, quando minha mulher e eu estávamos separados, cheguei tarde do trabalho. Não queria entrar em casa para não enfrentar lembranças. Fique no jardim. Era uma noite clara, havia lua, nuvens, grama molhada, e brisa nas folhas das árvores. Algo que estava lá muito antes de eu nascer, e estaria lá bem depois do último ser humano cumprir seu destino. O tipo de noite em que o vento assovia uma antiga melodia celta de solidão e saudade. Liguei para ela dali mesmo. Não havia ninguém no mundo capaz de apreciar aquela noite comigo. Seja lá o que havia acontecido entre nós, nunca desejei tanto estar com alguém, quanto desejava estar com ela ali naquela noite. Não sabia o que dizer quando ela atendesse. Mas desejava profundamente que ela estivesse sentindo aquilo comigo. Sei o que vc quer dizer com apreciar a simplicidade das pequenas coisas. São extremamente raras as pessoas que fazem o contrário. São elas que compõe as letras das melodias celtas de saudade e solidão. Mas, até as antigas canções falam acerca de algo mais poderoso que o destino. Algo que parece zelar para que essas pessoas raras se encontrem e formem círculos de amizade. Não estamos sozinhos.Nossa dor nos faz mais fortes e humanos, e torna verdadeira nossa alegria.

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  5. ...
    Apesar de ler e reler várias vezes,
    eu penso:
    "Afinal, como pode haver alguém q consiga escrever algo tão profndo e inspirador,real e ao mesmo tempo tocante?"
    VocÊ deve se orgulhar doque vc passa para as pessoas, se cada pessoa que eu conhece, soubesse abrir os olhos de alguém como vocÊ abriu os meus, ficaria mais alegre,
    não sei ao certo se isso foi preescrito por algo divino ou se existe mesmo alguma explicação para este acaso..
    pelo menos pra mim foi importante.
    Obrigado.

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  6. Lu...Eu não me impressiono mais,pois sei da sua capacidade de descrever a alma humana como ninguém.Já falei que você deveria escrever um livro "Crônicas da Alma" um livro de Luciane Trevejo.Seria ótimo juntar tudo isso num só lugar aí outras pessoas teriam a oportunidade de ler os seus sentimentos e pensamentos.
    É com profundo sentimento de respeito que quando eu estou aqui garimpando alguma coisa na net,para colorir o meu dia,leio um texto seu.Continue escrevendo e descrendo o ser humano como poucos o fazem,estou feliz porque voltou.
    Bjs
    Saudades Lindona

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  7. PRIMOROSO.
    Vc se superou. Isso é q coisa para ser publicada, para que mais gente possa ter o prazer de ler.
    Parabéns, Lu!

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Sabia que somente pessoas especiais postam comentários aqui?